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personagens

Homem 1

Homem 2

Menino

Mulher

 

Todos os direitos reservados.

Texto registrado na Biblioteca Nacional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

Fernando Pessoa

Ato único

 

Cena 1

O cenário é uma praça enfeitada com papéis coloridos e decoração da Tanabata Matsuri, uma festa milenar japonesa. Há uma academia popular dessas que se encontram em cidades grandes. O Homem 1 entra com uma sacola, tira sua camisa. Tira um aparelhinho de som portátil, uma toalhinha. Passa protetor solar no corpo. Põe um óculos escuros, tira fotos de si mesmo com um celular e começa a se exercitar. Pega um livrinho, liga o som, que toca o início da Sinfonia n. 9 de Beethoven. Tira uma toalha de sua mochila e senta-se, exausto. Pega um livro. Lê o livro.

O Homem 2 entra com uma mochila, binóculo e uma rede de caçar borboletas. Olha o Homem 1, que olha o Homem 2. Acena. O Homem 1 não responde. Pega um pacote de salgadinhos bem barulhento. Começa a fazer exercícios espalhafatosamente. Começa a comer seu salgadinho fazendo barulho. Assovia, e é recriminado pelo olhar do Homem 1. Para. Fica parado.

Homem 2 – (Aproximando-se.) Adoro Mozart.

Homem 1 - É Beethoven. (Afasta-se.)

Homem 2 - Parece muito Mozart.

Homem 1 - Não parece nada com Mozart, é Beethoven.

Homem 2 - Tem certeza?

Homem 1 - É Beethoven. Ludwig Van Beethoven.

Homem 2 - Eu jurava que era Mozart. Wolfganf Amadeo Mozart.

Homem 1 - Você está errado.

Homem 2 - Você está certo. (Começa a comer seu salgadinho barulhento.) Aquela nuvem vai cobrir o sol por dez minutos e meio, exatamente.

Homem 1 - Não vejo nuvem nenhuma.

Homem 2 - Em dez minutos e meio aparecerá uma nuvem no céu que cobrirá o sol por dez minutos e meio. E logo começará a chover.

Homem 1 - Acho difícil, eu consultei a meteorologia. A previsão de hoje é dia cem por cento ensolarado, sem nenhuma nuvem no céu.

Homem 2 - Você está errado.

Homem 1 - Por gentileza, eu gostaria de continuar a ler o meu livro.

Homem 2 - O que você está lendo?

Homem 1 - Se você não se incomoda, eu gostaria de ficar em silêncio.

Homem 2 - Pois não, pois não, pois não. Só uma coisa, eu adoro esse livro. Tudo bem, claro que Aloísio Azevedo não chega aos pés de Machado de Assis, mas quem chega? Talvez Guimarães Rosa, mas é completamente outra proposta. O Mulato. Grande leitura. Maranhense, irmão do Artur Azevedo, e que personagem esse mulato! Que personagem! Uma pessoa que pensa que é branca, age como branca, tem a arrogância dos brancos e nunca imaginou se tratar de um mulato. Muito atual, muito atual. Como todo clássico que se preze, atualíssimo! Eu particularmente nunca entendi o racismo, sabe? No fundo, se você parar para pensar direito, somos todos parentes, viemos todos do mesmo macaco!

Homem 1 - Acabou?

Homem 2 - Quer um salgadinho?

Homem 1 – Eu quero apenas continuar a minha leitura, fazer meus exercícios como mandou o cardiologista e aproveitar o que resta do sol. E desculpe a sinceridade, mas você está me incomodando. E muito.

Homem 2 - O salgadinho é ótimo. Lançamento. Sabor moqueca capixaba. Você não sabe o que está perdendo.

Homem 1 – Eu sou vegetariano.

Homem 2 - Ótimo, o salgadinho é de farinha de trigo.

Homem 1 – Eu estou de regime.

Homem 2 - O salgadinho é light. Sem gordura trans, zero açúcar.

Homem 1 - Ok, ok, ok. (Come os salgadinhos.)

Homem 2 – Eu sabia que você ia querer, quando eu vi a sua cara eu pensei, hmmm, esse sujeito tem cara de quem gosta de salgadinho. Olha, eu trouxe suco de bacuri, que eu não sei se você sabe, mas é o príncipe das frutas, é uma fruta do Maranhão, olha que coincidência! Divina mesmo, só provando prá entender, e trouxe também outras coisinhas deliciosas, mas que eu não vou revelar agora.

Homem 1 - Eu não estou interessado no seu bacuri. Nem no seu salgadinho, nem em você, se é que você me entende. Eu saio cedo, muito cedo, cedíssimo da minha casa neste domingo de sol para dar uma relaxada, ler tranquilamente meu Aloísio Azevedo, escutar meu Beethoven e pelo visto é impossível. É impossível a tranquilidade nesta cidade, não é mesmo? Por isso as pessoas estão comprando sítios, casas na praia, em outras cidades, outros estados e até mesmo outros países. E sabe prá que? Prá se livrar de pessoas inconvenientes, chatas e abusivas como o senhor. Sinceramente? Você estragou meu domingo feliz. (Sai do aparelho de ginástica.)

Homem 2 - O senhor está estressado, senhor... Como é mesmo o seu nome?

Homem 1 – Não interessa. Não é da sua conta.

Homem 2 - O senhor precisa relaxar...

Homem 1 – Era o que eu estava tentando fazer antes do senhor chegar. Mas é impossível. Impossível, impossível! (Sai.)

Homem 2 - Volte aqui, senhor.

Homem 1 - Não volto. Eu nunca mais voltarei aqui. Nunca mais quero ver sua cara. Nunca mais quero ter a infelicidade de ouvir a sua voz.

Homem 2 - Relaxe.

Homem 1 – Quanto mais o senhor falar para eu relaxar, mais nervoso eu vou ficar.

Homem 2 – O sol está uma delícia.

Homem 1 - Fique com ele.

Homem 2 - Daqui a pouco isto aqui estará lotado.

Homem 1 - Por isso eu vim prá cá cedo. Mas não tem jeito. Esta cidade não tem mais jeito. Eu vou mudar para o deserto.

Homem 2 - O deserto é fantástico. Lençóis maranhenses, o senhor conhece?

Homem 1 - Eu não quero papo.

Homem 2 – E as dunas?  Parece que a gente está na lua em 3D, 360 graus, e quando a gente olha a lua, parece que a gente está em marte. Todo homem precisa conhecer o deserto. É uma boa pedida. Se o senhor quiser eu tenho umas dicas de pousadas por lá. E sabe, o povo lá é feliz. De um jeito primitivo de ser feliz. É emocionante. Quando o senhor vai?

Homem 1 - Cala a boca. Que sorte a minha encontrar você. Que sorte! Num dia de descanso, num domingo! E amanhã é segunda feira e o que vai acontecer? Eu poderia estar feliz com alguma lembrança especial que me ajudasse a suportar o fardo de ter que trabalhar em um emprego que eu odeio, de ganhar mal, de estar com nome sujo no SERASA, de ter dívidas, de não ter perspectiva de progredir na vida, de ter uma vida infeliz, sozinho, cheio de problemas, velho, acabado, engordando, ficando feio, perdendo a alegria de viver, solitário, amargo, mal amado, sem interesse pelas coisas dos homens e cansado dessa chatice que é a vida, e pelo visto vai piorar, vou ficar lembrando de um sujeito invasivo, chato, que não sabe ficar calado, que não suporta o peso do silêncio, e que tem a capacidade de estragar o fim de semana de um feriado prolongado. É isso que eu terei. Raiva! E mais infelicidade, e mais medo de viver, mais desespero, mais angústia. Obrigado, muito obrigado mesmo. (Tira uma toalha da sua mochila e começa a enxugar-se.)

Homem 2 - Quer um chocolate?

Homem 1 - Eu não quero nada. Eu queria o silêncio, a paz, o meu Beethoven, o sol, o parque vazio, esta piscininha velha, o horizonte, mas agora eu não quero nada. Eu quero morrer.

Homem 2 - Que delícia esse chocolate. É de bacuri, o príncipe das frutas. Um sabor indescritível. Prova.

Homem 1 - Eu odeio doce.

Homem 2 - Tenho meio amargo também.

Homem 1 - Eu não vou provar uma fruta que eu não conheço de um homem que eu não conheço, eu não vou.

Homem 2 - O senhor precisa descansar.

Homem 1 - Era essa a intenção.

Homem 2 - Venha cá. Vamos nos exercitar. Liberar endorfinas. Eu trouxe um frescobol. Jogar frescobol ajuda a relaxar.

Homem 1 - Joga sozinho.

Homem 2 - Não tem graça.

Homem 1 - Vire-se!

Homem 2 - Vai chover. Vai fazer frio. Eu trouxe um guarda-chuva. Se você quiser, eu posso te emprestar. Podemos dividir.

Homem 1 - Não vai chover. Não chove há semanas. Não vai chover pelos próximos meses. Pelos próximos anos! E eu não preciso de um guarda-chuva. Eu odeio guarda-chuvas. Acho imbecil.

Homem 2 - Imbecil? Eu já ouvi muitas coisas sobre guarda-chuvas, mas eu nunca tinha ouvido alguém dizer que um guarda-chuva é imbecil.

Homem 1 - Eu não disse que um guarda-chuva é imbecil, eu disse que eu acho imbecil o guarda-chuva.

Homem 2 - Mas não é a mesma coisa?

Homem 1 - É diferente. É totalmente diferente.

Homem 2 - O senhor tem filhos?

Homem 1 - O que isso tem que ver com o guarda-chuva?

Homem 2 - Responda, o senhor tem filhos?

Homem 1 - Eu não tenho filhos, nem quero ter. Eu jamais colocaria um filho no mundo, é muita responsabilidade. Eu mal dou conta da minha própria vida. Este país está muito caro, por isso eu vim aqui nesse parque, nesta academia popular, porque é grátis, senão eu iria para um clube, senão eu teria minha própria academia particular.  

Homem 2 - Não é caro ter uma academia como essa.

Homem 1 - Eu não tenho espaço na minha casa para uma academia como essa.

Homem 2 - Uma academia como essa a gente pode colocar até na sala.

Homem 1 - Eu moro em uma kitinete. Não cabe nem eu, quanto mais uma academia.

Homem 2 - Na minha casa tem uma academia.

Homem 1 - Popular?

Homem 2 - Particular.

Homem 1 - E por que você vem aqui?

Homem 2 - Porque eu gosto de conhecer pessoas.

Homem 1 - Eu odeio conhecer pessoas.

Homem 2 - Se o senhor quiser ir na minha casa, eu também tenho uma piscina. E uma lareira, e uma quadra de tênis.

Homem 1 - O senhor é rico.

Homem 2 - Rico? Não, eu não sou rico. Eu apenas tenho uma piscina em casa. Eu conheço homens ricos, bem ricos, que não tem piscinas em suas casas.

Homem 1 - Eu conheço homens que dariam tudo para ter uma academia dentro de casa e não ter que sair aos finais de semana para nada. Eu não queria ver gente.

Homem 2 - Veio no lugar errado. Já eu queria. Queria e quero. Quero ver muita gente. Quero ver este parque cheio de crianças correndo prá lá e prá cá, gritando, chorando, rindo, quero ver casais se amando, pássaros voando, sorveteiros, meninas lindas em suas roupas de domingo, algodão doce, pessoas cantando, jogando futebol, dando cambalhotas, bebês sendo amamentados pelas suas mães, velhinhos se exercitando, adolescentes andando de skate, homens tomando sol, cachorros correndo atrás dos galhos de madeira arremessados pelos seus donos, famílias fazendo piquenique, a exuberância da vida, como essa sinfonia de Beethoven que o senhor também ama.

Homem 1 - O senhor veio no lugar certo, então.

Homem 2 - Eu moro ali naquele prédio.

Homem 1 - O senhor é bem rico. Diz que não é rico mas é rico sim. Para morar em um prédio desses na frente deste parque tem que ser muito rico.

Homem 2 - O senhor também é rico.

Homem 1 - Quem me dera.

Homem 2 - Não respira? Não vê as cores das nuvens, das flores, das borboletas? Não sente o cheiro do orvalho da manhã? Não sente a maciez da grama, a textura da água, o sabor das frutas? O sol tocando sua pele, o som das ondas do mar, o aconchego da sombra das árvores?

Homem 1 - Eu estou falando de dinheiro.

Homem 2 - Eu não estou falando de dinheiro, eu estou falando de solidão.

Homem 1 – (Olha para o Homem 1, condoído. Volta para o aparelho de ginástica. Come os salgadinhos dele.)

Blecaute.

 

Cena 2

(Eles estão jogando frescobol).

Homem 1 – Eu não sou muito bom nisso.

Homem 2 – O senhor é melhor do que imagina. Um a zero.

Homem 1 – Cansa não?

Homem 2 – O importante é o foco e a atenção.

Homem 1 – Mas isso serve prá que? Nunca entendi os esportes. Não entendo a paixão das pessoas por futebol. Eu simplesmente não consigo torcer para time nenhum.

Homem 2 – Nem para a seleção brasileira?

Homem 1 – Só em copa do mundo. De resto acho uma chatice sem fim.

Homem 2 – Serve para várias coisas. Exercitar-se é a primeira delas. Você sabia que muitos reis tinham ideias inteiras jogando xadrez? Dois a zero.

Homem 1 – Xadrez eu até entendo por causa do raciocínio. Na verdade eu nunca fui bom em esportes de espécie alguma. Odeio competições. Para mim as pessoas tinham que se ajudar. Dois a um.

Homem 2 – Mas a competição estimula, faz as pessoas evoluírem. E não se pode negar a indústria. O senhor consegue imaginar o tanto de dinheiro que as olimpíadas movimentam?

Homem 1 – O meu é que não movimenta. Eu não dou um tostão furado para ver um jogo. Acho o fim da picada.

Homem 2 – Ainda bem que existem milhares de pessoas que não pensam como o senhor. Três a um. Praticar esportes aumenta nossa confiança, o nível de concentração, melhora o colesterol, reduz os riscos de doenças cardíacas, evita depressão, regula a taxa de açúcar no sangue, reduzindo o risco de diabetes, retarda o processo de envelhecimento, melhora o sono, libera os hormônios acumulados durante os momentos de stress. Também funciona como uma espécie de tranquilizante natural – depois do exercício a gente experimenta uma sensação de serenidade, entre outras coisas, enfim, faz um bem danado. Três a um.

Homem 1 – O senhor é médico? Professor de educação física ou algo assim? Três a dois.

Homem 2 – Que nada, eu sou um amador, só isso. Quatro a dois.

Homem 1 – Se não cansasse tanto eu acho que me interessaria um pouco. Quatro a três. A preguiça é boa. Comer muito é tão bom. Comer, comer, comer, comer! Eu gosto tanto de comer!

Homem 2 – Eu tenho um amigo que simplesmente se esquece de comer.

Homem 1 – Eu não tenho amigos.

Homem 2 – Tem um. Eu.

Homem 1 – Você não é meu amigo.

Homem 2 – Não?

Homem 1 – Eu não tenho amigos.

Homem 2 – O que eu sou então?

Homem 1 – O senhor? O senhor é o senhor. E só. Mas não é meu amigo. A amizade se constrói com tempo, com decepções, com surpresas, sobretudo com o tempo.

Homem 2 – O senhor não teve amigos nem na sua infância?

Homem 1 – Eu não tive infância, eu trabalhei desde cedo. Quanto estava mesmo o jogo? Quatro a dois?

Homem 2 – Quatro a três.

Homem 1 – Então empatamos. Quatro a quatro. Tempo. Preciso beber água.

Homem 2 – Bebe um suco de bacuri. Na minha mochila, pode pegar. Tem uma garrafinha térmica. Ainda está gelado.

Homem 1 – O príncipe das frutas? E quem seria o rei? A rainha eu sei que é a maçã. Claro, a maçã tem cara de rainha.

Homem 2 – Acho que o abacaxi, não? Já tem até a coroa!

Homem 1 – É bonito aqui. Esse parque. Estou olhando agora. É bonito sim. Silencioso, bonito, grande. Eu venho aqui há anos e nunca reparei direito. É bonito. Quer dizer, tem a sua beleza. Poderia ser mais bonito. Tudo pode ser melhor. Quando atingir a perfeição perde a graça. Ou melhor. Não existe perfeição.

Homem 2 – Ah, existe sim.

Homem 1 – É, este suco de bacuri é perfeito.

Homem 2 – Beethoven é perfeito! Do início ao fim! Perfeito!

Homem 1 – Eu não gosto de música. Eu não gosto de esportes, eu só gosto de comer. Nem de dormir eu gosto. Eu sinto que estou perdendo tempo. E ao mesmo tempo eu simplesmente não consigo agir. Você acha que eu tenho problemas?

Homem 2 – Todo mundo tem problemas.

Homem 1 – Mas não como os meus.

Homem 2 – Todo mundo pensa que seus problemas são os únicos do mundo.

Homem 1 – Os meus são. São mesmo. São únicos, muitos, enormes, estressantes, irritantes, desanimadores. Eu não gosto de viver. Eu acho a vida uma causa perdida. Eu sou um pessimista nato. Sempre fui assim.

Homem 2 – Vamos voltar ao jogo? Temos que desempatar.

Homem 1 – Vai até quanto?

Homem 2 – A gente não combinou.

Homem 1 – Até cinco.

Homem 2 – Pelo menos até dez, senão não tem graça.

Homem 1 – Não tem graça mesmo assim.

Homem 2 – Não está gostando.

Homem 1 – Vamos lá. Eu vou me esforçar um pouco.

Homem 2 – Se você quiser a gente para, sem problemas.

Homem 1 – Parar seria um problema. Empatar é pior que perder. Prá mim é. Prefiro perder.

Homem 2 – Eu prefiro ganhar. Cinco a quatro.

Homem 1 – Cinco a cinco.

Homem 2 – Seis a cinco.

Homem 1 – Seis a seis.

Homem 2 – Você melhorou.

Homem 1 – Sorte de principiante.

Homem 2 – Você precisa se amar mais.

Homem 1 – Sete a seis, virei.

Homem 2 – Viu? Todo mundo consegue.

Homem 1 – Eu não sou todo mundo. Eu sou pior. Mas obrigado mesmo assim.

Homem 2 – Sete a sete.

Homem 1 – Droga.

Homem 2 – Não se pode empolgar muito com sua vitória, senão ela cega. Oito a sete. Virei.

Homem 1 – Você tem mais experiência.

Homem 2 – Se você perder a gente joga uma revanche. Nove a sete. Xeque.

Homem 1 – Você já viu as caravanas de crianças que vêm do interior para passar o fim de semana aqui nesse parque?

Homem 2 – Existe isso é?

Homem 1 – Elas moram em cidades que não tem verde, área livre. Muitas vêm de cidades dormitório, algumas vêm de cidades abandonadas, outras de cidades que simplesmente não tem área para diversão. Viajam às vezes um dia inteiro para chegarem aqui, e se sentirem livres. Nove a oito.

Homem 2 – Eu nunca ouvi falar nisso.

Homem 1 – Uma vez por mês elas chegam. São as crianças de domingo. A felicidade delas, você precisa ver...

Homem 2 – Eu moro ali em cima e nunca vi. Como eu nunca vi isso?

Homem 1 – Talvez você tenha tanta ideia formada sobre as coisas que esteja cego também.

Homem 2 – Estamos todos cegos de alguma forma.

Homem 1 – Empatamos. Você vê. Com toda sua experiência em frescobol, empata com um amador.

Homem 2 – A vida é cruel. Quer ir a quinze?

Homem 1 – De jeito nenhum.

Homem 2 – Então eu ganhei. Parabéns. Foi um excelente jogo.

Homem 1 – Catastrófico.

Homem 2 – Você é um exagerado. Foi pau a pau.

Homem 1 – Eu queria ser o fã que matou Lennon, a bala que matou Kennedy. Mas minha sina é essa mesmo, desde criança. Eu nunca ganhei nem no par ou ímpar, nem no jogo da velha...

Homem 2 – Par...

Homem 1 – Ímpar... Viu?

Homem 2 – Passaram-se mais de dez minutos e não choveu. Eu também errei. Eu sempre erro minhas previsões senão eu seria um vidente.

Homem 1 – Se mata!

Homem 2 – Eu não tenho motivo nem coragem prá isso. Suicídio é para os fracos.

Homem 1 – Então aproveita. Tem mais bacuri?

Homem 2 – Se o senhor não tivesse bebido tudo...

Homem 1 – Então chegou minha hora...

Homem 2 – Não vai esperar as crianças de domingo?

Homem 1 – Eu tenho medo.

Homem 2 – Medo das crianças?

Homem 1 – Da felicidade delas...

Homem 2 – (Guarda as raquetes. Com uma toalha, enxuga-se. Come uma maçã.) Então você também deveria ter medo de mim também...

Homem 1 – De você? Não. Eu tenho medo de mim. (Põe outra música, desta vez de Mozart – Pequena serenata noturna. Volta aos seus exercícios.)

Homem 2 – (Também faz exercícios.)

Blecaute.

 

Cena 3

(Eles estão deitados, esbaforidos.)

Homem 2 – Realmente Beethoven é muito lindo!

Homem 1 – É Mozart!

Homem 2 – Parece demais Beethoven.

Homem 1 – Não. Não parece em absolutamente nada.  É como dizer que Pelé parece Maradona.

Homem 2 – Ou como Beatles parece com os Rolling Stones?

Homem 1 – Tipo isso. É claro que Beatles é muito melhor que Rolling Stones.

Homem 2 – De jeito nenhum, Rolling Stones é muito melhor que Beatles! E Chico Buarque é muito melhor que Caetano Veloso!

Homem 1 – Eu prefiro Gilberto Gil.

Homem 2 – É como dizer que José Celso Martinez Corrêa parece Antunes Filho.

Homem 1 – Ou que Gaby Amarantos parece a Fafá de Belém.

Homem 2 – Ou que querer Tchu é a mesma coisa que querer Tcha...

Homem 1 – Ok, vamos parar por aqui... Mozart é Mozart, Beethoven, e uma rosa é uma rosa é uma rosa. Está muito calor. Eu preciso de água.

Homem 2 – Você viu a fonte da praça ali na frente?
 

Homem 1 – Imprópria para o banho, imprópria para o consumo.
 

Homem 2 – Lástima.
 

Homem 1 – Mergulha mesmo assim.
 

Homem 2 – Quer me matar?
 

Homem 1 – Estou brincando.
 

Homem 2 – Eu não.
 

Homem 1 – Eu venho aqui desde que nasci praticamente. Isso aqui não tinha nada, era só mato. As árvores tinham frutas, tinha passarinho, eu corria pelado, gritando pela grama. Quando você sai muito cedo de uma cidade e volta muitos anos depois, não é mais a mesma cidade, você não pertence mais àquele lugar, não é mesmo?
 

Homem 2 – Ao passado não, ao presente sim.
 

Homem 1 – Quero voltar prá casa. Que horas são? É cedo ainda. Tenho o domingo inteiro pela frente. Amanhã é segunda-feira, e a segunda-feira pesa quando não se está fazendo nada. Eu estou desempregado. Eu trabalhei a vida toda, me dediquei à minha profissão. Escolhi o caminho das pedras, de uma certa maneira porque a paisagem era mais bonita. Mas às vezes eu acho que me arrependo. Eu acho que fui muito idealista, muito romântico, cheio de utopia e esperança no mundo, nas pessoas e olha no que me transformei, num  pessimista convicto, amargo, cheio de certezas sobre tudo, com medo, eu virei um homem patético, com pena de mim mesmo, derrotado e derrotista, invejoso, pobre, sem esperanças, sem fé. E o pior é que eu não consigo mudar. Eu simplesmente não consigo. O que eu faço? Me ajuda? Você pode me ajudar? Minha vó sempre dizia: Torna-te quem tu és. É uma frase de Nietszche, o filósofo alemão. A vida toda eu pensei nessa frase. Mas tornar-me quem eu sou? A questão é: quem eu sou?
 

Homem 2 – Eu vou mergulhar. E não vou morrer.
 

Homem 1 – Você vai ficar doente. Coliformes fecais, mosquito da dengue, xixi de rato...
 

Homem 2 – Eu vou mesmo assim. Você falando da sua infância perdida, fiquei com vontade de  lembrar como era como quando eu era menino.
 

Homem 1 –  Se você morrer, se você adoecer...
 

Homem 2 – Você cuida de mim. (Sai.)

 

(Pausa. O homem 1 tira uma foto de si mesmo, com cara de choro, com seu celular e olha para ela. Sorri. Faz abdominais.)

 

(Mozart – Requiem. Blecaute.)

 

 

Cena 4

 

Homem 2 – (Voltando encharcado.) A água da fonte não estava tão suja como você disse, pelo contrário, estava limpa. Eles devem ter reformado. Que delícia. Tão lindo esse dia. Esse parque. E não vai chover. Se chover, vai chover de madrugada. Nessa época do ano chove de madrugada, depois para, depois o sol seca tudo. E as flores nascem, e os passarinhos começam a caçar as minhocas para seus filhos, e as pessoas começam suas tarefas diárias e o mundo gira e a vida segue. Eu não morri. Eu estava pensando sobre o que você me falou. Sobre seu desemprego, suas dívidas, sua falta de reconhecimento na sua profissão depois de anos de dedicação e trabalho pesado enquanto uma criançada começa a surgir por aí, ganhando em um mês o que talvez você não ganhe durante toda a sua vida.

Homem 1 – Não é desanimador?

Homem 2 – (Mozart - Piano Concerto No. 21).  Em São Petesburgo, na Rússia, a primeira cidade moderna do mundo, e uma das mais belas também, Um funcionário muito simples, um homem comum, quase imperceptível de um departamento burocrático, era ridicularizado por todos por causa de seu casaco velho, desgastado, rasgado, puído. No inverno as zombarias aumentaram e ele se sentia mal, muito mal. Foi até um alfaiate perguntar quanto custava um novo. O alfaiate ofereceu um casaco lindo para ele, com botões de prata e até pelo de marta, que é um animal que tem um pelo muito macio e delicado, faz-se pincéis com eles, a um preço que ele não poderia pagar. Então ele dedicou sua vida a economizar dinheiro para poder adquirir a peça. Até que um dia conseguiu comprar. Quando ele finalmente vestiu o casaco novo, tudo a sua volta se transformou, ele se transformou, as pessoas se transformaram, o casaco novo passou a ser a coisa mais importante da vida dele. Ele passou finalmente a ser alguém, a ser visto. Deixou de ser um fantasma. Até para uma festa chique ele foi convidado e viu a alta classe de perto, coisa que nunca tinha visto. Mas quando voltava prá casa, na noite de estreia do casaco, ele foi roubado. E nosso camarada foi à desgraça total. Sua vida perdeu totalmente o sentido. Ele passou a ter alucinações, via o casaco em toda parte, ficou doente, até que morreu. E virou um fantasma. E assombrava a cidade, para se vingar do roubo do casaco. Até que um dia ele encontrou a pessoa mais importante para ele, o seu chefe, que tinha ignorado o pedido de busca do casaco. E ele se vingou, e roubou o casaco do chefe. Nicolau Gogol escreveu este conto, dentre outras coisas maravilhosas, ele tinha uma cara ótima, e um corte de cabelo que só vendo! E é Gogol, não é Google! Dostoiewky disse que todos nós viemos dessa história fantástica cheia de burocracia, tempestades, momentos de glória, morte, mistério, vingança. Eu, você, todo mundo. Todo mundo sente que falta alguma coisa, alguns acham que está dentro, outros acham que está fora.

Homem 1 - Eu tenho certeza que está fora.

Homem 2 – Eu tenho certeza que está dentro.

Homem 1 - Eu não sei se rio deste homem ou se sinto pena dele. Nós causamos pena e ao mesmo tempo somos ridículos. Eu fico muito confuso às vezes, perdido com as reviravoltas da minha vida, este looping de montanha russa no escuro. Eu rio ou sinto pena de mim?

Homem 2 - Eu danço no caos. Nesses momentos turbulentos eu aproveito que a vida está chacoalhando e chacoalho junto com ela.

(Eles dançam. Sinfonia N. 5 de Beethoven).

(Blecaute.)

 

Cena 5

Homem 2 - (Soprando bolas de sabão.) Onde você mora?

Homem 1 - Longe. Andei, peguei metrô, andei de novo, peguei um ônibus, outro ônibus, outro metrô, andei de novo e cheguei.

Homem 2 - Você é como uma dessas crianças de domingo.

Homem 1 - Eu tenho 40 anos.

Homem 2 - Uma criança crescida. Pelo visto é solteiro, ou separado. Eu olho para uma pessoa e sei muito de quem ela é. Quando eu era criança, nos aeroportos, eu brincava de adivinhar de que países as pessoas eram. Eu acertava muito. Errava pouco, quase nunca. Olhando você, dá para fazer um raio x. Suas mãos. Você trabalha com elas. E muito. Parecem ásperas. Seus pés. Muitos calos. Você deve ter andado muito descalço na vida, provavelmente nasceu em alguma cidade do interior. Suas roupas não são de marcas famosas, ou melhor, são falsificadas.  Seus dentes são obturados. Você é pobre, mas é culto. Deve ter cursado alguma universidade pública, e pela sua cara rústica, nada muito intelectual. Na verdade você em cara de mecânico.

Homem 1 - Se você acha isso realmente importante, eu trabalhava em um caixa de pedágio de estrada.

Homem 2 – Eu nunca imaginaria isso.

Homem 1 - Você tem roupas caras. Hmmm... Gosta de bacuri, hmmm, eu não sou muito bom nisso. É culto, inteligente, apesar de confundir Beethoven com Mozart, gosta desta causa perdida que é a vida, acredita que faz a diferença no mundo quando na verdade as coisas não precisam de você. Mas o que importa? Quem se importa? O que importa o que eu faço ou deixo de fazer? Somos parentes, você mesmo disse, viemos todos do mesmo macaco, de alguma forma, ou de Adão e Eva. Nascemos do pecado, e nossos primeiros irmãos não se davam muito bem... Acho que é isso. Você tem um cigarro?

Homem 2 – Eu também estou desempregado.

Homem 1 – Mas qual a sua profissão?

Homem 2 - Você prefere de filtro branco, vermelho, de cravo ou sem filtro?

Homem 1 - Nossa... Sei lá. Tem de menta?

Homem 2 - Tenho de cereja, serve?

Homem 1 - Então me dá um sem filtro.

Homem 2 - Gaulloise ou Gitanes?

Homem 1 - Tanto faz, eu não conheço nenhum dos dois. Você carrega tudo isso com você aí?

Homem 2 - Pega um Gitanes.

Homem 1 - E você?

Homem 2 – Eu não fumo. Mas eu bebo. Eu trouxe um vinho. Quer?

Homem 1 - Um vinho? Mas não está muito cedo?

Homem 2 – Nunca é cedo demais para se tomar um vinho.

Homem 1 - Sendo assim...

Homem 2 – É um vinho sem preço. Muito antigo. O sabor fica na boca por dias... Para uma ocasião especial. Mas todo dia é uma ocasião especial. Estar vivo já é uma ocasião especial para um vinho.

Homem 1 - O que mais você carrega aí nessa mochila?

Homem 2 – Eu não tenho uma profissão. Eu sou herdeiro. Quer dizer, fui herdeiro. Eu herdei tudo o que tenho. Eu nunca construí nada com minhas próprias mãos. Eu sou um inútil. Não gosto de trabalhar, simplesmente. Quanto mais dinheiro eu gasto, mais dinheiro tem na minha conta.

Homem 1 - Isso é bom. Isso é muito bom, isso é extraordinariamente fantástico!

Homem 2 - A minha inutilidade?

Homem 1 - A sua conta bancária.

Homem 2 – Você não gosta da vida, mas gosta de dinheiro.

Homem 1 – Eu amo dinheiro.

Homem 2 – Como você ama se você nunca teve?

Homem 1 – Eu sou um capitalista apaixonado pelo dinheiro. Os números, as cédulas, até os centavos, a bolsa de valores, os bancos, o cheiro de dinheiro novo, ouro, pedras preciosas, petróleo, eu simplesmente amo! Quando eu trabalhava no pedágio, passando o troco para as pessoas eu sentia a maciez do papel moeda, eu olhava cada uma delas contra a luz, para ver se eram verdadeiras, eu cheirava, eu passava o dinheiro no meu rosto. Sabe quanto dinheiro passava por esses dedos durante um dia de trabalho? Em dia de feriado, eu contei mais de um milhão. Estas mãos, estas mãos são milionárias, já tocaram em grande parte do dinheiro dos habitantes deste país.

Homem 2 – E você nunca comeu um bacuri!

Homem 1 – Eu sou pobre. Eu nunca saí daqui. Mas sair prá quê?

Homem 2 – Para conhecer os homens, os lugares, as coisas.

Homem 1 – Eu me olho todos os dias no espelho. E sabe quem eu vejo? A imagem e semelhança imperfeita de Deus. Vendo a mim mesmo eu vejo todos os homens do mundo. Eu não gosto do que vejo. Eu só gosto do dinheiro que eu não tenho.

Homem 2 – E que você nunca vai ter?

Homem 1 – Como você sabe? Como você afirma isso? Eu comprei um bilhete de loteria. O resultado sai hoje. Talvez você esteja falando com um milionário.

Homem 2 – Você está falando com um milionário.

Homem 1 – Desculpe a minha sinceridade, mas você não tem cara de milionário.

Homem 2 – Cara pode ser que não, mas eu tenho os milhões.

Menino - Vocês poderiam fazer silêncio?

Homem 1 – O que você disse?

Homem 2 – Eu disse que pode ser que eu não tenha cara de milionário...

Homem 1 – Não sobre seus milhões, sobre o silêncio.

Menino - Ele não disse nada quem disse fui eu. (O menino aparece sujo, maltrapilho, vestindo um kimono japonês velho, sujo e surrado. Enquanto ele fala, arremessa dardos.) Eu estava conversando com o bem te vi, mas vocês ficaram falando alto, e ele foi embora sem eu entender o que ele falou. Acho que foi sobre a minha mãe. Não. Acho que foi sobre o cachorro grande. Não. Acho que foi sobre o gato. O meu gato subiu nesse pé de mexerica amanhã. Ontem ele vai voltar com minha mãe. Quantos dias tem um mês? Ela amarrou essa fita no meu braço e disse quando ela arrebentasse, os ursos polares iriam parar de chorar. Você sabe por que as mulheres casam de branco? Por quê? Por quê? Por quê? O bem te vi me disse, mas eu esqueci. Quando ele voltar eu vou esquecer de lembrar. Eu tenho oito anos menos um. Quando eu ficar grande eu vou ser criança de novo sabia? O guarda não deixa eu subir na árvore. Eu perguntei por que e ele falou que o chefe dele falou que era prá ele falar que não podia. Eu falei que queria falar com o chefe dele, mas ele falou que eu não podia porque eu era criança. Então eu estou esperando esta fita arrebentar. Quando esta fita arrebentar eu vou poder subir na árvore e pegar meu gato de volta. E voltar prá casa com a minha mãe.

Homem 1 – Onde está a sua mãe?

Menino - Ela está esperando meu irmão, ué.

Homem 2 – Você quer uma maçã?

Menino - Tem bacuri?

Homem 1 – Você conhece bacuri?

Menino - Eu conheço a minha mãe. Sabia que ela é bailarina? Ela dança a dança das borboletas? Sabe como a gente dança a dança que as borboletas dançam?

Homem 2 – Eu coleciono borboletas.

Menino – Assim.

(Mozart. O menino dança a dança das borboletas. O homem 2 dança junto. O homem um tira fotos com seu celular.)

 

Cena 6

(O homem 2 e o menino estão deitados no chão, com as mãos para cima, movimentando apenas os dedos. O homem 1 tira fotos de tudo.)

Homem 2 – Por que você tira tanta foto?

Homem 1 – Se eu não alimentar minhas redes sociais todo mundo vai esquecer de mim.

Menino - Se você não conversar com a gente a gente vai esquecer de você também!

Homem 1 - Onde você mora, moleque?

Menino – Eu não sou moleque.

Homem 1 – Você é velho, então?

Homem 2 – (Dançando butô com sua sombra.) Eu adoro dançar. Acho que encontrei um companheiro para as minhas aulas de butô.

Menino - Não é butô é a dança das borboletas!

Homem 2 –  A dança das borboletas parece muito o butô. A dança japonesa das sombras. Qualquer um pode dançar butô. A dança dos antepassados. A gente dança junto com os mortos.

Menino – (Manhoso.) Não é butô!  A minha mãe disse que é a dança das borboletas! Borboletas! Borboletas!

Homem 1 – (Lendo uma notícia em seu celular.) Você leu isso? A família real inglesa .

Menino - (Pega uma folha de papel que está no chão e faz um avião de papel.) Quando a minha mãe chegar a gente vai voltar prá casa nesse avião.

Homem 1 – Um cantor de um grupo de rap americano homofóbico disse que sua primeira desilusão amorosa foi com um homem!

Homem 2 - Domingo é meu dia preferido na semana. Todos os outros são um copasso de espera para a chegada do domingo.

Homem 1 – Um elefante invadiu um shopping Center na Nova Zelândia. Tem elefante na Nova Zelândia? Onde fica a Nova Zelândia? Alguém aqui conhece a Velha Zelândia?

Menino – Eu moro na casa da minha mãe, ué. (Arremessa seu avião de papel.)

Homem 2 – (Cantando.) “Every Day is like Sunday… Every day is silent and grey…”

Menino – Na casa da minha mãe tem uma flor, um jabuti, um navio, uma estrela cadente, um leão marinho, uma baleia rosa, um cavalo de fogo e um pé de algodão doce.

Homem 1 – Como eles dizem que o Brasil é uma das dez maiores potências mundiais se eu estou na lama? Se minha vida financeira é catastrófica? Eu vou confessar uma coisa prá vocês. Eu me inscrevi na Fuvest. Eu decidi prestar vestibular.

Homem 2 – Aos 40 anos?

Homem 1 – Algum problema?

Homem 2 – Por isso o Aloísio Azevedo que você estava lendo?

Menino – Na casa da minha mãe não tem borboletas.

Homem 2 - Você já percebeu que o primeiro dia da semana é o último também? Quer dizer... Domingo é o primeiro dia da semana, mas é o último do fim de semana, quer dizer, a semana começa e acaba no domingo. O fim de semana e o começo da semana são exatamente a mesma coisa...

Menino – Eu soltei todas as borboletas do aquário. Mas você não pode contar prá ela. Por favor, não conta, não conta, não conta!

Homem 1 – Onde fica a casa da sua mãe moleque?

Menino – Por que você é feio?

Homem 2 - Quem disse que eu sou feio?

Menino - Quem disse que eu sou moleque?

Homem 1 – Onde fica a casa da sua mãe, menino?

Homem 2 – (Fazendo um barco de papel.) Se a sua mãe não quiser ir de avião, você pode ir nesse barco.

(Som de caminhão de lixo.)

Menino – Por favor não deixa o caminhão de lixo me levar! Não deixa, não deixa, não deixa! Eles falaram que iam me levar. Eles falaram que se eles me vissem aqui de novo eles iam me levar.

Homem 2 - Ninguém vai levar você.

Menino - Eles me levaram uma vez, mas eu fugi, eu virei uma borboleta e fugi. Eu e meu gato. Eu contei pro bem te vi.

Homem 1 - Onde você mora, menino?

Mulher – (Surge grávida, vestida de gueixa, segurando alguns balões, aliviada por encontrar seu filho. Ela tem marcas roxas sobre seu corpo, inclusive no rosto.) Ele mora comigo onde o sol encontra com o rio e o rio encontra com o mar.

Menino – (Corre para os braços de sua mãe. Pega os balões.) Mamãe!

(O Homem 1 tira uma foto da cena e posta em suas redes sociais. Beethoven.)

Cena 7

(O menino abraça a sua mãe sem largar.)

Mulher – Peço desculpas se meu filho foi inconveniente.

Homem 2 - Imagina.

Homem 1 - Ele é um moleque muito esperto.

Menino – Grrrrrrrrrrr... (Faz um gesto de karate.) Iá!

Mulher – A gente que é mãe não pode se descuidar um minuto.

Menino – Quase que o caminhão do lixo me levou.

Mulher – Ele acha que vai ser levado para o lixo.

Homem 1 - Bom, de alguma maneira ele tem razão. Tudo acaba virando lixo de alguma forma...

Homem 2  – Vocês trabalham no circo?

Mulher – Hoje temos duas sessões. Nos domingos trabalhamos bastante.

Menino – Eu quero ser atirador de facas. Mas minha mãe diz que eu ainda sou pequeno.

Mulher – O pai dele é atirador de facas.

Menino – Eu quero ser o melhor atirador de facas do mundo! Eu e meu irmão.

Mulher – É melhor que você seja o dono do circo, meu filho. Já existem artistas demais no mundo. Eu não quero que você passe pelo que a gente passou.

Menino – Eu não quero ser o dono do circo, eu quero ser o atirador de facas do circo. O dono do circo é muito chato e vive zangado. Meu pai é muito legal e vive rindo.

Mulher – Vive rindo mas não tem dinheiro para pagar o próprio papel higiênico.

Menino – (Chorando.) Eu não quero comprar papel higiênico, eu quero ser atirador de facas.

Homem 1 – Atirador de facas não choram.

Menino – Choram sim! Eu já vi meu pai chorar!

Homem 2 – Artistas precisam de coragem, menino! Limpe essas lágrimas. (Limpa as lágrimas do menino.)

Mulher – Hoje não é dia de choro, hoje é dia de trabalhar e de vender os balões. Olha quanto balão bonito você tem prá vender...

Homem 2 - Eu quero comprar um balão. Ou melhor, dois: um prá mim e outro prá meu amigo aqui. Você é uma odalisca de verdade?

Mulher – Eu sou toda de verdade.

Menino – (Rindo.) A minha mãe é careca.

Mulher – Filho!

Menino - A minha mãe não é careca, o meu irmão é careca!

Mulher – Filho!

Menino - É verdade que eu era careca mãe?

Homem 2 - Alguns velhos ficam carecas e banguelas também.

Menino - Então os velhos são iguais às crianças?

Homem 2 - Só os bons.

Menino - Eu sou bom?

Homem 1 - Você? Você é um moleque!

Homem 2 - Para de encher o saco do moleque, quer dizer, do menino.

Menino - Eu quero ser igual ao meu avô.

Mulher – O avô dele é o palhaço Bombom.

Homem 2 - O palhaço Bombom? Você é filha do palhaço Bombom? Eu amava o palhaço Bombom! Eu sabia todas as músicas dele! A dança das borboletas vermelhas! (Imita uma borboleta dançando.) Eu também queria ser um palhaço quando ficasse grande. Que maravilha! Fantástico, fantástico, fantástico! Quem diria que um dia eu conheceria a família do palhaço Bombom. E onde está ele?

Menino - Ele virou uma estrela, não é mamãe?

Homem 1 - Ele morreu.

Menino - Ele não morreu, ele virou uma estrela.

Mulher -  Ele virou uma estrela linda. A mais linda de todas.

Homem 2 - Puxa, sinto muito. Eu era o maior fã do seu avô. Eu ainda sou. Sempre serei.

Mulher - Obrigado, o senhor é muito educado e muito gentil.

Homem 2 - Não precisa agradecer, eu que agradeço. Olha, eu compro os balões.

Menino - Oba! Oba! Oba!

Mulher - Eu não tenho troco para esta nota.

Homem 2 - Pode ficar, não tem problema nenhum.

Mulher - Não, isso não está certo.

Homem 1 - Aproveita que ele é rico.

Mulher - Não, isto não está certo.

Homem 2 - Por favor, eu faço questão.

Menino - Aceita mamãe. Por favor, por favor, por favor!

Homem 2 - Se você não aceitar eu vou ficar chateado.

Mulher - Tudo bem. Tudo bem, tudo bem. Então o senhor é nosso convidado para o espetáculo de hoje à tarde. Eu também faço questão.

Homem 2 - Obrigado.

Homem 1 - Se eu não tivesse que estudar para o vestibular eu também aceitaria.

Mulher - O senhor vai prestar vestibular?

Homem 1 - Para medicina, quero ser pediatra. Acho, mas na verdade eu estou em dúvida entre pediatria ou veterinária.

Mulher - Que bonito. Mas quantos anos o senhor tem?

Homem 1 - Está me chamando de velho?

Mulher - Todo velho é também uma criança.

Menino - Só os bons, ele é mau.

Mulher - Vocês vão no Tanabata Matsuri?

Homem 1 - Tana o quê?

Mulher – Tanabata Matsuri, a festa japonesa das estrelas.

Homem 2 – Eu não estou sabendo...

Mulher – Vocês não perceberam que o parque está todo enfeitado?

Homem 2 – Esta cidade tem tanta coisa que deixa a gente cego.

Mulher - Uma antiga lenda, criada há quatro mil anos e inspirada nas estrelas Vega e Altair, conta a estória de uma certa Princesa Orihime e seu amado Kengyu. Ela era uma excelente tecelã e confeccionava a mais perfeita seda de que se tinha notícia. Preocupado com sua excessiva dedicação, o rei ordenou que ela se distraísse, dando passeios diários pelo reino. Em uma dessas ocasiões, a bela moça conheceu o pastor Kengyu e os dois se apaixonaram. Esquecendo-se completamente de suas obrigações, a princesa tecelã e o pastor dedicaram todo o tempo a esta paixão e por este motivo foram castigados, sendo transformados em estrelas e separados pela via láctea. Comovido com a tristeza do casal, o Senhor Celestial permite um único encontro anual entre os dois, que é hoje. As pessoas escrevem seus desejos nos papéis coloridos, os Tanzaku, e penduram nos bambus enfeitados. Em agradecimento à dádiva recebida, o casal atende aos pedidos do fundo do coração, feitos em papéis coloridos e pendurados em bambus. No fim do dia os bambus são queimados em um ritual e a fumaça atinge as estrelas. E eles são realizados.

Homem 2 - Que lindo.

Mulher – (Entregando os papéis coloridos.) O amarelo é dinheiro, o azul é proteção dos céus, o branco é paz, o rosa é amor, o verde é esperança, e o vermelho é paixão.

Menino - Qual é cor prá eu ser atirador de facas?

Homem 2 - Verde, esperança.

Menino - Eu quero verde, verde, verde.

Homem 2 – Eu quero vermelho.

Homem 1 – Eu quero amarelo. Vocês podem dizer que não, mas com dinheiro a gente compra até esperança, e se bobear, até proteção dos céus...

Mulher – Eu quero branco. Estou precisando muito de paz. A vida não está nada fácil.

Homem 1 – Quem tem uma caneta?

Menino – Eu tenho, eu tenho, eu tenho! (Entrega canetas para todos.)

Homem 2 – Eu quero um azul também, pode ser?

(Todos escrevem seus pedidos. Entregam para a Mulher. O Homem 2 escreve em um papel. Finca em um dos aparelhos de ginástica.)

Homem 1 – Eu não acredito nessas coisas, mas está aqui. Só não vale ler o que eu escrevi porque eu tenho vergonha.

Mulher – Não precisa ter vergonha dos seus sonhos, senhor.

Menino - Eu não tenho vergonha de ser atirador de facas. Eu tenho vergonha de ser o dono do circo. Ele é muito mau. Muito, muito, muito mau. Ele disse que vai me jogar no lixo.

Homem 2 – Ninguém vai jogar você no lixo, menino, que bobagem.

Mulher – Você ainda é muito pequeno para ser atirador de facas, meu filho lindo.

Menino – Eu sou bom, mamãe, eu treinei, a senhora quer ver? Eu treino desde quando eu era mais pequeno que o bem te vi. Se a senhora deixar... A senhora pode ficar ali naquela árvore?

Mulher – De jeito nenhum.

Menino – Por favor, por favor, por favor, eu escolhi o verde, eu tenho esperança, as estrelas vão atender o meu pedido!

Homem 1 – Se você quiser eu posso ficar para você. Em qual árvore? (Ri do menino.)

Menino - Todo mundo ri de mim quando eu falo que eu consigo atirar facas.

Homem 2 - Acredite em você, menino, estude os melhores e será o melhor. Não importa se todos estão contra você ou dizendo que você não vai conseguir. Muitos dos maiores homens que deixaram sua marca no mundo foram tratados assim.

Mulher – Não precisa. Eu fico. Eu estou acostumada.

Homem 2 - Riram de Thomas Edison, riram de Walt Disney. Faziam piadas sobre Henry Ford. E estas pessoas transformaram nossos costumes e nossa cultura. Não há um passo que a humanidade dê que não tenha sido influenciado por eles. Vamos lá! Fé, determinação e prática! E não confie em todo mundo!

Mulher – Em mim você pode confiar meu filho.

Menino – E você também pode cofiar em mim, minha mãe!

(Mozart. O menino atira dardos em volta de sua mãe. Os dardos ficam ao redor dela. Todos aplaudem.)

Menino – Eu sabia, eu escolhi o verde! Eu tenho esperança, mamãe! Esperança, esperança! Vocês também precisam de esperança. Uma para você, uma para você e a mais bonita para minha mãe. A minha mãe está triste.

Mulher – Vamos embora, meu filho, já ficamos tempo demais, os senhores querem descansar.

Menino – Ela brigou com meu pai.

Mulher - Nós estamos indo embora. Daqui há pouco o parque estará lotado e eu ainda tenho que fazer muita coisa no circo. E o que acontece dentro da nossa casa deve ficar dentro da nossa casa.

Menino - O meu pai bateu na minha mãe.

Mulher – Adeus. Esperamos vocês no circo hoje à tarde. Arigato. (Pega a mão do seu filho, e ao sair, desmaia.)

 

Cena 8

(Mozart. Todos estão ao redor dela, abanando-a. Ela toma um suco de bacuri.)

Mulher – Desculpas, desculpas, mil vezes desculpas.

Homem 2 – Você não tem absolutamente nada do que se desculpar.

Mulher - Que gostoso este suco.

Homem 2 - É bacuri.

Mulher - Deslumbrante. A gente pode falar isso de um suco? Deslumbrante?

Homem 2 - Deslumbrante é você. Deslumbrante!...

Homem 1 – Cuidado que o marido dela é atirador de facas!

Mulher – Eu não me alimentei direito, eu não dormi direito... A vida de uma mulher do atirador de facas de circo não é nada fácil.

Homem 1 – A vida de um caixa de pedágio também não é nada fácil.

Menino – A vida de um atirador de facas é fácil, é muito fácil, é só treinar bastante.

Homem 2 - Está melhor?

Mulher - Prá eu melhorar mesmo só seu eu for pro Japão!

Homem 2 – Você está toda roxa...

Mulher - Eu caí. Eu tenho labirintite.

Menino – Meu pai brigou com minha mãe porque ele bebeu cerveja. Minha mãe odeia cerveja e cigarro, não é mamãe?

Homem 2 - Se vocês quiserem descansar, eu moro logo ali.

Mulher - Imagina, nós precisamos mesmo ir. Como eu disse, hoje temos apresentação. O show não pode parar.

Homem 1 - É muito bonito o circo de vocês.

Mulher - Não é nosso, nós somos apenas os artistas. Nós precisamos muito dele.

Homem 2 - Apenas? Não é o circo que faz os artistas e sim os artistas que fazem o circo!

Mulher – (Sorri.) Vocês não me deram os desejos. (Todos entregam os papéis prá ela.) Serão devidamente amarrados nos bambus e queimados no ritual. As estrelas apaixonadas atenderão, mas só se vierem do fundo, bem do fundo do coração. Eu estava aqui olhando para este pasto onde os cavalos correm nos finais de semana e levam as crianças de domingo para a liberdade, para a alegria... Nós passamos bilhões, trilhões de anos sendo pó de estrela. E nesses poucos anos tão frágeis que passamos por aqui neste planeta perdido nesta galáxia gigantesca, perdemos o pouco tempo que nos resta hipnotizados com as ilusões de felicidade que o ego da nossa insignificante existência cria. Talvez a vida também é uma ilusão. Uma doce ilusão. Realmente chegou nossa hora. Foi um prazer inesquecível conhecê-los, cavalheiros. O dever nos chama. Eu espero vocês no circo. Vamos lá, fazer de cada dia uma obra prima! Arigato.

Menino - Arigato.

Homem 2 – Nenhuma existência é insignificante. (Pega os balões.)

Homem 1 - O que você está fazendo?

Homem 2 - Estes balões são para o palhaço Bombom. (Solta os balões. Beethoven.)

 

Cena final

(Estão jogando cartas.)

Homem 2 - Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

Homem 1 - Você vê... O que era prá ser um dia tranquilo, um fim de semana qualquer...

Homem 2 – Estou animadíssimo para ver o show deles. Você  vem comigo ver o show mais tarde, meu amigo?

Homem 1 – Eu tenho medo de palhaço. E além do mais eu preciso estudar. Dúvida cruel! Não sei se presto esse vestibular prá tentar recomeçar a vida aos 40 anos de idade e me torno um homem com diploma, emprego e salário maior... Não sei se continuo a ser caixa de pedágio, que pode ser insignificante prá maioria das pessoas, mas que me deu muita alegria nesses últimos 20 anos. Ah, isso deu! Deu mesmo! E ninguém tira isso de mim!  (Gargalha de si. Para. Sofre.) Eu tenho muito, muito, muito medo de viver, de fracassar, de morrer sem ter vivido. Eu tenho medo de viver com medo. Durante muito tempo eu tive medo de não achar o meu lugar no mundo, a minha missão.

Homem 2 - Eu sempre tive dúvida se o caminho das pedras que eu escolhi prá minha vida, por ser o mais longo e duro, era mesmo o mais bonito. Se ele realmente desembocava no mar...  

Homem 1 – Se você não tivesse experimentado ia morrer sem saber...

Homem 2 - Pois não é?

Homem 1 - Pois é!

Homem 2 – Eu só sei que tenho coragem! E vontade de ir, e ir e seguir, seguir, seguir... E deixar minha marca no mundo, e depois ser esquecido...

Homem 1 - Você acha que vai ser tudo em vão? Que tudo vai ser esquecido?

Homem 2 - Se até os Imperadores foram esquecidos... Imagina nós!... Está ouvindo? Eu já posso sentir a vibração das crianças de domingo chegando!

Homem 1 – Querido, este é o som do caminhão de lixo!

Homem 2 – (Gargalha de si.) Que horas são?

Homem 1 - Estamos mais perto da segunda-feira, e dos telefonemas de cobrança, e das filas nos supermercados, do congestionamento das avenidas... Para onde vai toda essa gente no fim de semana? Elas deveriam ficar lá. O mundo seria mais silencioso.

Homem 2 – Eu sinto um vazio tão grande, e quer saber? Esse vazio me preencheu a vida toda! Eu não tenho do que reclamar!

Homem 1 - Você é otimista demais!

Homem 2 – E você é pessimista demais! Me ajuda aqui com a série final das minha abdominais?

Homem 1 - Você não tem uma perna... Você não tem as duas pernas!

Homem 2 – Eu tenho pernas sim, você está segurando nelas!

Homem 1 - São de metal!

Homem 2 - Não deixam de ser pernas!

Homem 1 - Acidente?

Homem 2 - Digamos que sorte. Quer dizer... Talvez.

Homem 1 - Sorte?

Homem 2 – (Faz as abdominais.) Um senhor fazendeiro criava cavalos. Em um fim de semana como este, o seu cavalo mais caro sumiu. Ele ficou preocupado. Preocupado é pouco, ele ficou desesperado. O empregado dele falou: que azar! Ele parou, pensou e disse: talvez... No dia seguinte o cavalo voltou e trouxe consigo outro cavalo, mais lindo e mais raro que ele. O seu empregado ficou feliz e falou: que sorte! Ele parou, pensou e disse: talvez... Seu filho ficou encantado com o novo alazão. Foi afoito montar no bicho. Caiu na hora. Quebrou a perna como eu. O empregado falou: que azar... E o fazendeiro falou: talvez... Na semana seguinte saiu a convocação para o exército, que seu filho mais temia na vida, e por causa da perna quebrada, ele foi dispensado. O empregado falou: que sorte! E o fazendeiro: talvez... O fazendeiro era meu pai. O filho sou eu.

Homem 1 - Por isso as pernas...

Homem 2 – Eu sobrevivi, não sobrevivi? E estou mais leve. Acordei tenso, desanimado como você, com um peso existencial sobre meus ombros, mais pessimista do que você. Acredite, existem pessoas mais otimistas que eu e mais pessimistas que você. Eu estava triste, triste, triste. Até que, por acaso eu encontrei você. E o menino, e a mulher grávida E essa história toda. E sabe  que conclusão eu tiro dessa manhã que passamos juntos?

Homem 1 – Todo dia parece domingo quando você está desempregado e todo dia parece sábado quando você é herdeiro?

Homem 2 – Que mulher linda, não? Acho que eu estou apaixonado.

Homem 1 - Ela é casada com o atirador de facas!

Homem 2 - Eu não me importo. Eu fiquei com o papel verde. (Queima-o.) Em cada seu humano não há um dia que não traga em si a primavera.

Homem 1 – Que bobagem... Primavera... Isso não tem a menor importância.

Homem 2 – Que bobagem? Primavera! Isso é a coisa mais importante que existe!

(O homem 2 acaba seus exercícios. Pega seu binóculo. Olha para cima. Com gestos, indica que tem uma borboleta. Pega seu binóculo, sua rede, mochila,  pertences, e vai atrás dela. Sai de cena em direção à platéia. O Homem 1 tira uma foto da borboleta com seu celular e posta nas suas redes sociais. Vai para o aparelho de ginástica, pega o bilhete. que é ouvido em voz off: “Torna-te quem tu és.” Volta aos seus exercícios. “Every Day is like Sunday” – Morrissey. O Homem 1 dança como as borboletas. Som de crianças em algazarra. A luz vai caindo lentamente.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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